Não incidência de ISS sobre atividades-meio

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Não raras vezes, os Municípios autuam empresas por entenderem que muitas de suas atividades enquadram-se como prestação de serviço, atraindo a incidência do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN. Em verdade, em muitos casos o objetivo do fisco municipal é tributar as atividades-meio de forma separada, como se cada uma delas correspondesse a um serviço autônomo, independente. Conforme se verá adiante, é essencial verificar – para fins de incidência do ISS ou ICMS – se essas etapas integram ou não a cadeia de industrialização do produto. 

Pois bem. De início, é preciso registrar que nos termos do artigo 156, III, da Constituição Federal de 1988, compete aos Municípios instituir impostos sobre prestação de serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei complementar. Veja-se:

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

Ao tratar do tema, o Ministro Luiz Fux, quando do julgamento do Recurso Especial nº 888.852, destacou, com precisão, que “aspecto material da hipótese de incidência do ISS não se confunde com a materialidade do IPI e do ICMS. Isto porque: (i) excetuando as prestações de serviços de comunicação e de transporte transmunicipal, o ICMS incide sobre operação mercantil, que se traduz numa “obrigação de dar” (artigo 155, II, da CF/88), na qual o interesse do credor encarta, preponderantemente, a entrega de um bem, pouco importando a atividade desenvolvida pelo devedor para proceder à tradição; e (ii) na tributação pelo IPI, a obrigação tributária consiste num “dar um produto industrializado” pelo próprio realizador da operação jurídica. “Embora este, anteriormente, tenha produzido um bem, consistente em seu esforço pessoal, sua obrigação consiste na entrega desse bem, no oferecimento de algo corpóreo, materializado, e que não decorra de encomenda específica do adquirente””

O referido imposto municipal, na sua acepção constitucional, incide sobre uma prestação de serviço, sendo inconfundível com a denominada obrigação de dar. O critério material da regra matriz de incidência do ISS é a prestação de serviço, entendida como uma conduta humana consistente em desenvolver um esforço em favor de terceiro, visando a adimplir uma “obrigação de fazer[i].

Registre-se, por oportuno, que para fins de incidência do ISS, as atividades devem ser consideradas como um fim, “correspondentes à prestação de um serviço integralmente considerado em cada item”. Nesse sentido, merece transcrição trecho do voto do Ministro Luiz Fux, quando do julgamento do recurso excepcional mencionado acima:

“É certo, portanto, que o alvo da tributação do ISS “é o esforço humano prestado a terceiros como fim ou objeto. Não as suas etapas, passos ou tarefas intermediárias, necessárias à obtenção do fim. (…) somente podem ser tomadas, para compreensão do ISS, as atividades entendidas como fim, correspondentes à prestação de um serviço integralmente considerado em cada item. Não se pode decompor um serviço porque previsto, em sua integridade, no respectivo item específico da lista da lei municipal nas várias ações-meio que o integram, para pretender tributá-las separadamente,isoladamente, como se cada uma delas correspondesse a um serviço autônomo, independente. Isso seria uma aberração jurídica, além de construir-se em desconsideração à hipótese de incidência do ISS.” (…)

Assim, sempre que o intérprete conhecer o fim do contrato, ou seja, descobrir aquilo que denominamos de ‘prestação-fim’, saberá ele que todos os demais atos relacionados a tal comportamento são apenas ‘prestações-meio’ da sua realização”(Marcelo Caron Baptista, in “ISS: Do Texto à Norma – Doutrina e Jurisprudência da EC 18/65 à LC 116/03”, Ed. Quartier Latin, São Paulo, 2005, pág. 284)”. Grifou-se.

Em outra oportunidade, o Superior Tribunal de Justiça adotou o mesmo entendimento:

TRIBUTÁRIO. ISS. SERVIÇO DE TELECOMUNICAÇÃO. ATIVIDADE-MEIO. NÃO INCIDÊNCIA. PRECEDENTES. SÚMULA 83/STJ. 1. O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que, independente da cobrança pela prestação de serviço, “não incide ISS sobre serviços prestados que caracterizam atividade-meio para atingir atividades-fim, no caso a exploração de telecomunicações” (REsp 883254/MG, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, julgado em 18.12.2007, DJ 28.2.2008 p. 74). Precedentes. Incidência da Súmula 83/STJ. 2. É pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de que o teor da Súmula 83/STJ aplica-se, também, aos recursos especiais interpostos com fundamento na alínea “a” do permissivo constitucional. Agravo regimental improvido. (AgRg no AREsp 445.726/RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/02/2014, DJe 24/02/2014).

Não se pode admitir a tributação autônoma de uma atividade-meio, sob pena de sobreposição tributária. O ISS não incide sobre serviços que constituem etapa do ciclo de industrialização ou comercialização de produtos. Em relação à decomposição da atividade-fim, Aires Fernandino Barreto, pontua, com precisão, que: “(…) não é possível, porque ilegal e inconstitucional, pretender tributar atividades-meio, separando-as do fim perseguido, para considerá-las separadamente, isoladamente, como se cada uma delas correspondesse a um serviço autônomo, independente. Isso seria uma aberração jurídica, além de constituir-se em desconsideração à hipótese de incidência desse imposto.”[ii]

Sérgio Pinto Machado acrescenta: “beneficiamento é operação que importa modificar, aperfeiçoar ou, de qualquer forma, alterar o funcionamento, a utilização, o acabamento ou a aparência do produtor. Exemplos são as operações de descascamento, limpeza, polimento, separação ou outras a que se submetem os produtos agropecuários, para serem consumidos ou industrializados. O produto em si continua sendo o mesmo, mantém sua individualidade, apenas são aperfeiçoados seu funcionamento, sua utilização, sua aparência ou acabamento, sem que sua classificação seja alterada, daí se distinguindo da transformação, em que se obtém um produto novo. (…) Se os objetos são destinados a industrialização ou comercialização, não há incidência do ISS, mas de IPI ou ICMS.”[iii]

No julgamento da Medida Cautelar na ADI nº 4.389, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, o STF decidiu que no caso de serviços gráficos incide o ICMS, e não ISS, uma vez que o trabalho gráfico executado por encomenda em embalagens caracteriza insumo do processo produtivo de mercadorias. Fará parte do produto que, ao final, será posto em circulação no comércio. O julgado mostra-se importante pelo fato de atentar para a importância da analise das atividades dentro do processo produtivo (se elas são atividades-meio ou fim). Nesse ponto, merece transcrição da manifestação do Min. Joaquim Barbosa:

“Para o aparente conflito entre o ISS e o ICMS nos serviços gráficos, nenhuma qualidade intrínseca da produção de embalagens resolverá o impasse. A solução está no papel que essa atividade tem no ciclo produtivo. Conforme se depreende dos autos, as embalagens têm função técnica na industrialização, ao permitirem a conservação das propriedades físicoquímicas dos produtos, bem como o transporte, o manuseio e o armazenamento dos produtos. Por força da legislação, tais embalagens podem ainda exibir informações relevantes aos consumidores e a quaisquer pessoas que com ela terão contato. Trata-se de típico insumo”.

É preciso observar se as atividades listadas pelo fisco como sendo prestação de serviços encerram ou não de forma objetiva a cadeia produtiva. Se forem etapas preparatórias ao processo de industrialização, indevida a incidência de ISS. No caso da industrialização do arroz, por exemplo[iv], as etapas de pesagem, coleta de amostras, análise de teor de impurezas, análise de teor de umidade do grão, verificação de rendimento, limpeza, peneiração, armazenamento, descasque, polimento, seleção, empacotamento, etc, têm como propósito – em regra -viabilizar/instrumentalizar a atividade negocial.

Em importante julgado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul analisou se as etapas de secagem e beneficiamento do arroz enquadravam-se no campo de incidência do ISS ou ICMS. De forma correta, o Tribunal de Justiça pontuou que a atividade-fim da empresa era o “comércio e indústria de arroz”, sendo que essas etapas (atividades-meio) fazem parte da cadeia de industrialização do produto, prevalecendo à incidência do tributo estadual. “E se incide ICMS, sob pena de bis in idem, não pode haver cobrança de ISS”. Veja-se a ementa do julgado:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO ANULATÓRIA. ICMS X ISSQN. SECAGEM E BENEFICIAMENTO DE ARROZ. INDUSTRIALIZAÇÃO POR ENCOMENDA. ATIVIDADE PREPONDERANTE. BEM OFERECIDO À PENHORA NA EXECUÇÃO FISCAL. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO TRIBUTO. Consta como atividade principal do alvará de licença para localização concedido pelo município o “Comércio e Indústria de Arroz” e como atividade secundária “secagem e beneficiamento de arroz”. As fases de secagem e beneficiamento integram a cadeia de industrialização do produto, como atividades-meio, atraindo a incidência do ICMS, na forma do art. 31, Apêndice II, Seção I, item I, da Lei Estadual nº 8.820/89. Apesar de constarem também no item 14.05 da Lista Anexa à LC nº 116/05, no caso, fazem elas parte de etapas da cadeia de industrialização do arroz, prevalecendo o tributo estadual. E se incide ICMS, sob pena de bis in idem, não pode haver cobrança de ISS. Precedentes do STF e desta Corte. Possibilidade de suspensão da exigibilidade do tributo pelo fumus boni iuris e por já haver sido ofertado bem à penhora na execução. Necessidade de ser o ato perfectibilizado para manutenção da suspensão aqui concedida. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70062575741, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Almir Porto da Rocha Filho, Julgado em 25/02/2015).

Se a atividade-fim da empresa é a industrialização e venda de mercadoria, indevida a incidência do ISS nas atividades-meio, uma vez tratar-se de contribuinte do ICMS. Isso é facilmente comprovado pela análise do Contrato Social, Cadastro Nacional de Atividades Econômicas – CNAE, Alvará de Localização, dentre outros elementos. Tome-se como exemplo o caso julgado pelo TJRS, acima mencionado.

Por fim, amparado na jurisprudência e doutrina abalizada, conclui-se pela impossibilidade de incidência do ISS sobre os serviços prestados que caracterizam atividade-meio para atingir atividades-fim, sob pena de sobreposição tributária.

 


[i] Recurso Especial nº 888.852, julgado em 04/11/2008, de relatoria do Ministro Luiz Fux.

[ii] BARRETO, Aires Fernandino. Aspectos Teóricos e Práticos do ISS. São Paulo: Dialética, 2000. p. 133.

[iii] MARINS, Sérgio Pinto. Manual de Impostos Sobre Serviços. 6ª Edição. São Paulo: Atlas, 2004. p. 249/250.

[iv] Exemplo do processo de industrialização do arroz (descrição das atividades-meio) – breve descrição:

O arroz certamente está entre os cereais mais consumidos do mundo. O Brasil figura entre os maiores produtores, com destaque para a produção dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Cataria e Mato Grosso. O ciclo produtivo do arroz (produção, industrialização e comercialização) envolve uma série de etapas, sendo que muitas práticas diárias variam conforme o Estado produtor (costume local).

No processo de industrialização destacam-se algumas etapas, como a compra, o transporte, recepção, depósito (em muitos casos, realizado pelo próprio produtor), beneficiamento (envolvendo analise, descasque, polimento e seleção), embalagem e comercialização. Todas essas etapas são essenciais e necessárias ao processo de industrialização.

Pois bem. Após o transporte da lavoura até a indústria, é realizado o depósito, com a emissão da nota fiscal de “entrada a depósito”, momento em que o arroz é submetido à limpeza, pesagem, descarga, classificação, dentre outros procedimentos. Nesse processo, por exemplo, é realizada a análise do teor de impureza ou umidade, sendo uma etapa dentro do processo de industrialização – custos da operação -, que vai repercutir, inclusive, quando da efetivação da compra do arroz pelo produtor (procedimento necessário, influenciando na precificação do produto).

No caso de muitas indústrias beneficiadoras de cereais, em especial no Estado do Rio Grande do Sul, adota-se essa prática de efetivação da compra do arroz – do produtor – em momento posterior ao depósito na indústria. Muitas indústrias adotam como política apenas o beneficiamento de arroz próprio. Claro, outras indústrias beneficiam arroz de terceiro, sob encomenda – além do arroz próprio.

Dessa forma, esse arroz depositado – que contabilmente ainda não entrou no estoque da empresa – é destinado ao beneficiamento e venda somente após a efetiva compra do arroz em casca do produtor. Para tanto, uma nota fiscal de devolução é emitida, com a posterior emissão de uma nota fiscal de compra. A partir desse momento o arroz passa a integrar o ativo da empresa – estoque -, seguindo seu normal destino – industrialização e venda. Ressalvado os casos, conforme acima mencionado, das indústrias que beneficiam arroz de terceiro, sob encomenda.

Em virtude dessa prática, de efetivação da compra somente após a “entrada a depósito” do arroz em casca na indústria, não raras vezes o arroz contabilizado em nome de terceiros supera o arroz contabilizado como próprio da indústria. Corrobora-se a isso, o fato de que em muitas situações, a indústria compra o arroz direto daquele produtor que possui estrutura de armazenagem, mas em virtude da sua falta de estrutura para a emissão da nota fiscal eletrônica de compra e venda, o arroz entra na indústria como depósito, para posterior emissão da nota fiscal eletrônica de compra e venda.

As indústrias de arroz são contribuintes do ICMS, que no caso do Estado do Rio Grande do Sul, encontra-se prevista no art. 31, Apêndice II, Seção I, item I, da Lei Estadual nº 8.820/89. Nesse caso, o Cadastro Nacional de Atividades Econômicas – CNAE é1061-9/01 (beneficiamento de arroz). É preciso, claro, fazer algumas ressalvas. Nas hipóteses onde o produtor não efetiva a venda para do arroz em casca para indústria – após a “entrado a depósito” na indústria – ou no caso de depósitos realizados pela Companhia Nacional de Abastecimento – CONAB (para guarda e conservação dos produtos), as notas fiscais devem ser lançadas como prestação de serviço de armazenamento, com o devido recolhimento do ISS. O primeiro exemplo, onde a compra não é efetivada para a indústria, representa um percentual pequeno – casos excepcionais. Essa é, em síntese, a forma como muitas indústrias de arroz trabalham.

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